As séries de Fourier cumprem dois séculos
Em 1822, o matemático e físico francês Jean-Baptiste Joseph Fourier publicou o livro Théorie Analytique de la Chaleur (“Teoria Analítica do Calor”), expressando a difusão do calor como soma de séries infinitas de senos e cossenos. As séries de Fourier tinham ‘visto a luz’, um instrumento matemático de grande importância pelas suas interessantes aplicações na resolução de inúmeros problemas de Física e Engenharia. Que este artigo sirva como homenagem ao excelente cientista.
Fourier (1768-1830) foi o nono de 12 irmãos, aos 10 anos já órfão de pais e mãe, o que não o impediu de desenvolver o seu enorme talento. Cedo se interessou pela matemática, sendo exemplo da sua grande ambição uma frase que escreveu na correspondência que mantinha com um professor: “Ontem fiz 21 anos, com esta idade já Newton e Pascal eram imortais.”
Foi aluno de Lagrange e Laplace. Viveu a Revolução Francesa como revolucionário muito em desacordo com a crueldade dos acontecimentos.
As suas capacidades não passaram desapercebidas a Napoleão, que o contratou como conselheiro científico e com outras funções na sua expedição ao Egito.
Como autor deste artigo, devo confessar que, anos após o meu périplo universitário e, como muitos, desligado de matemáticas de nível, ainda duvidava se recordava corretamente que fosse certa a possibilidade de Fourier que nos permite converter numa soma se senos e cossenos qualquer função periódica, pois não deixa de ser algo difícil de acreditar até que se interessa novamente pelo assunto. Veem-se novamente as demonstrações e afirma-se: – Afinal a memória não me falhou, por incrível que pareça, é verdade –.
Efetivamente, assim é, com as séries de Fourier pode-se converter qualquer função periódica numa soma de senos e cossenos de frequência múltipla da frequência fundamental, o que nos permite abordar problemas no domínio tempo ou espaço para convertê-los para o domínio da frequência. |
Incrível, não é? Pois este prodigioso gaulês ainda o conseguiu melhorar e conseguir tal conversão para qualquer função sem a necessidade de que seja periódica (= período infinito) graças à transformada de Fourier. Melhor, impossível!
Expressão da transformada de Fourier, em que f é a frequência e t o tempo (ou espaço, se a função original depender do espaço). Difícil entender a sua obtenção, mas fácil compreender muitas das suas aplicações. A magia transformada em matemática. Outra prova da maravilhosa ligação entre a matemática e a natureza.
Os extraordinários trabalhos do talentoso francês conseguem descompor um problema complexo noutros mais simples para poder entendê-los melhor e ajudar a resolvê-los. A consecução de tal conquista teve outros contribuintes de luxo, como Gauss, Euler, Bernoulli ou Lagrange, e é leal mencioná-los. De nomes assim, só poderia surgir algo grande.
No seguinte gráfico, mostram-se as seis primeiras harmónicas não nulas de um sinal tão distinto de uma sinosoidal como seja uma onda quadrada. O resultado da sua soma é o sinal a vermelho. Se continuarmos a somar harmónicas da série, o gráfico resultante irá aumentando a sua parecença com uma onda quadrada perfeita. Não deixa de ser maravilhoso contemplá-lo, embora já o conhecêssemos.
Fonte: https://www.lifeder.com/series-de-fourier/
Decomposição até à sexta harmónica de uma onda quadrada.
As séries de Fourier têm inúmeras aplicações no campo da eletricidade, da ótica, da acústica, do processamento de sinais, da análise de vibrações, da mecânica quântica, da econometria, do cálculo de estruturas etc.
Ao poder decompor ondas em somas de harmónicas, podemos filtrar as frequências que interessam para eliminar ruídos ou aproveitar todo o espetro radioelétrico em telecomunicações.
No terreno da energia elétrica, por exemplo, sabemos que as harmónicas são uma ameaça crescente devido à grande quantidade de recetores não lineares e de eletrónica que estão cada vez mais presentes nos circuitos. Em particular, sabemos que, para sistemas trifásicos, a terceira harmónica (frequência 150 Hz) se soma e vai em fase pelo neutro.
O seguinte gráfico ajuda-nos a entendê-lo:
Fonte: https://www.sectorelectricidad.com/13810/armonicos-que-son-y-como-nos-afectan/
Sistema trifásico de alimentação a partir das três bobines do secundário de um transformador e o retorno pelo neutro (quarto condutor).
Em cada fase podemos ver a componente fundamental de 50 Hz (a cinzento) e a sua terceira harmónica (a vermelho) separada. Pelo condutor neutro circulará a soma das três fases, pois lembremo-nos de que, ao ter uma frequência de 150 Hz, já não se anula neste condutor.
Isto explica a exigência de algumas regulamentações ao prescrever que a secção do condutor neutro seja, no mínimo, igual à das fases. |
Ao ver a ilustração, é fácil entender que, ao aumentar a secção do condutor neutro, conseguiremos evitar o seu sobreaquecimento. Daí que os cabos trifásicos de stock já não tenham neutro de metade da secção, mas sim igual à das fases por defeito.
Os cabos trifásicos apresentam secções iguais para fases e neutro para aguentar o eventual sobreaquecimento produzido pelas harmónicas, principalmente pela terceira.
O conhecimento das harmónicas ajuda-nos igualmente a avaliar a qualidade da energia que temos numa instalação. Para tal, define-se a taxa de distorção harmónica (THD) referenciada ao valor fundamental. No nosso caso, o valor a 50 Hz.
Taxa de distorção harmónica de uma função periódica g (gi é o valor eficaz da i-ésima harmónica)
Aplicada a tensão ou intensidade, podemos taxar a incidência das harmónicas e adotar as soluções necessárias. Estima-se que, a partir de 5% para tensão e/ou de 10% para intensidade, pode existir um problema de qualidade da energia, situando-se o risco elevado a partir de 8% e 50%, respetivamente.
Sem dúvida que Fourier ganhou um lugar privilegiado no “corredor da fama” da matemática e da engenharia. Há 200 anos que a Humanidade aproveita as suas magníficas contribuições. É justo recordá-lo e renovar a admiração por ideias tão espantosas.
Lisardo Recio Maíllo.
Product Manager.
Prysmian Group.